26 setembro 2020

O bom filho à casa torna

Há muitos anos, ele não passava mais por lá. Carregava na memória um ou outro detalhe daquela mobilha velha, que fora tão nova em outros tempos; ele pensava que conhecia cada pedaço daquele lugar. Pensava , também, que jamais voltaria.
Caminhando, divagando, titubeando (por que não?), levou a mão ao bolso e lá estava ela: aquela velha chave, que podia abrir uma porta há muito tempo fechada, quase esquecida. E lá foi ele, enfrentar aquele antigo esconderijo, que esperava, intacto e de braços abertos, por qualquer singela aproximação - como o cão que fita o seu tutor incansavelmente à procura de atenção (ou de um petisco).
A fechadura, trancada e seca, logo reconheceu aquela chave e a porta se abriu. Ele, que não é mais o bobo que fora, entrou, passou por alguns cômodos como se entrasse no apartamento de um estranho, aquele local que lhe pertencia desde sempre, mas que não parecia mais seu. 
Ele mudou e foi preciso tomar posse, novamente, daquilo que já era seu. Pintou imediatamente todas as paredes, rearranjou o leiaute daquela velha mobilha, desconectando das tomadas tudo que não respondia mais ao clique das velhas teclas; mais do que desconectando das tomadas, jogando fora tudo aquilo que não acrescenta mais nada.
Depois da pintura, ele se deparou com o momento de juntar a bagagem que será trazida para o velho novo local; coisas que desde o primeiro momento de suas existências, naquele velho esconderijo deveriam fazer morada, mas por falta de vontade, coragem e iniciativa, vagaram por aí, gorjeando como pequenos soluços, ou, ainda, naquele ambiente ao qual não pertencem, disfarçadas de conselhos de coach.
O bom filho à casa torna, com muitas novas caixas espalhadas pela sala, esperando ansiosas por serem abertas para que seu conteúdo revisto possa ocupar, finalmente, um espaço que é seu e do qual jamais deveria ter se afastado. Por enquanto, é momento de voltar.

12 março 2011

Queria ser grande

"Queria ser grande", pensava o garotinho enquanto andava tropicando nos caminhos, arrastando os pés com as sandálias que se prendiam a seus pezinhos por elásticos. Uma mão segurava aquela caixinha com uma bebida de morango que ele vinha tomando e que era o mais importante que ele conseguia ver naquele momento. A outra mão estava dada à da avó, que o conduzia apressada à casa, pois ainda havia muito a ser feito. Ele não tinha essa noção... não sabia que ser grande lhe tiraria muitas das liberdades, liberdades estas que ele nem sabia que possuia. Não sabia, pobrezinho, que ser grande era exatamente sempre ter muita coisa por fazer. Não sabia que ele jamais encontraria tempo para andar despreocupado de chinelos e regata na rua, preocupado com sua bebida, ou mesmo pensando: como será que ela teria ido parar lá dentro? Será que foi pelo buraquinho que faço quando coloco o canudo? E nesse momento ele até se esquecia da bebida... havia uns desenhos bonitos na caixinha, coloridos! Como era divertida aquela caixinha! cheia de letras e informações nutricionais que só eram importantes para quem era grande. A ele, bastava a caixinha, já que ele esquecera da bebida há muito tempo... "você vai derramar!" dizia a avó, e ele, como que despertado de um grande devaneio, lembrava-se do gosto de morango e se punha novamente a sugar o canudo, um pouco irritado por ter que obedecer a ordem subentendida da avó, mas que ele entendia muito bem. Ah, mas era tão estranho aquilo... por que nem sempre estava passando o desenho que ele queria na televisão? Eles chegariam em casa e, provavelmente, não haveria desenho na tv, então, a avó ligaria o rádio, na mesma estação de sempre, e tocariam as mesmas músicas... chegaria um momento em que tocaria a "Ave Maria", então, ele sabia que chegava a hora do banho, de jantar e que mamãe estava chegando... Mas de onde ela vinha? Ele nem a havia visto sair... por um momento, esqueceu-se dela e adormeceu. Ao acordar, estavam só ele e a avó, como sempre. Ele queria saber o que viria depois, queria saber como era ser grande, sair sozinho pelas ruas... Será que ele ainda teria medo de dormir no escuro? E o quintal? Como passar por aquele corredor escuro e umido para chegar lá fora, onde o sol aquecia as manhãs e brilhava tão bonito... tão lá em cima! Mas não importava, ele não conseguia olhar para o sol por muito tempo. Nada lhe prendia por muito tempo. Seus pensamentos eram rápidos, suas dúvidas, voláteis: duravam apenas o tempo que qualquer outra coisa levasse para passar diante de seus olhos e se tornasse questão de suma importância pela eternidade dos próximos minutos. Ele era livre e não sabia.
Livre para ficar sentadinho no sofá, com uma mamadeira cheia de leite com achocolatado, assistindo desenhos, até que se lembrasse daquele carrinho que estava parado ali no canto da sala, que logo se transformava numa estrada grande (não que ele soubesse o que era uma estrada, mas isso nunca importou, já que ele era livre). No meio da estrada, havia outro brinquedo e então a estrada era desconstruida. A facilidade de recomeçar, ou de criar algo novo a partir de algo que surge no caminho, ele jamais voltaria a ver ao ser grande, mas isso não era importante para ele naquele momento em que ele era apenas um menino que brincava na sala, esquecido do desenho animado e da mamadeira, abandonada no sofá, ou no chão. Nesse momento, ele já não se lembrava mais de que queria ser grande, nem se lembrava mais, também, da caixinha com a bebida de morango. Ele era apenas um menino livre, que brincava como se sua vida dependesse daquele mundo imaginário que, para ele, era tão grande como ele gostaria de ser e que, dentro de sua lógica exata de criança livre, fazia todo o sentido. Ele era verdadeiramente grande e não sabia.

30 julho 2010

Recomecemos

"Ninguém põe remendo de pano novo em vestido velho". Jesus - Mateus 9:16

Não conserves lembranças amargas.
Viste o sonho desfeito.
Suportaste a deserção dos que mais amas.
Fracassasste no empreendimento.
Colheste abandono.
Padeceste desilusão.
Entretanto, recomeçar é bênção na lei de Deus.
A possibilidade da espiga ressurge na sementeira.
A água, feita por vapor, regressa da nuvem para a riqueza da fonte.
Torna o calor da primavera na primavera seguinte.
Inflama-se o horizonte, cada manhã, com o fulgor do Sol, reformando o valor do dia.
Janeiro a janeiro,renova-se o ano, oferecendo novo ciclo de trabalho.
É como se tudo estivesse a dizer: "se quiseres, podes recomeçar".
Disse, porém, o Divino Amigo que ninguém aproveita remendo novo em pano velho.
Desse modo, desfaze-te do imprestável.
Desvencilha-te do inútil.
Esquece os enganos que te assaltam.
Deita fora as aflições improfícuas.
Recomecemos, pois, qualquer esforço com firmeza, lembrando-nos todavia, de que tudo volta, menos a oportunidade esquecida que será sempre uma perda real.

EMMANUEL - ("Palestras de Vida Eterna" - Francisco Cândido Xavier)

14 julho 2010

Oração pelo perdão (em memória de futuros demolidos antes de...)

Na verdade, o mundo parece não passar de uma pilha de perguntas aguardando respostas, ou, o que seria mais coerente, uma multidão de perguntadores que não sabe com exatidão nem mesmo o que gostariam de perguntar. E assim, arrastamo-nos por estas terras à procura daquilo que esteve o tempo todo tão perto, mas que nossos mundanos olhos não nos permitiram nunca ver - porque passamos a maior parte do tempo em busca de falsos argumentos que nos provem aquilo que já está por si só provado - e então, cresce a angústia e a sensação de impotência diante de novos acontecimentos que fazem o passado ficar em seu devido lugar, ávido pela terra que lhe sepultará os olhos inquisidores. Perdão. Perdoe. Sim! Faça o obséquio de perdoar a este pobre pecador as faltas cometidas, as injustiças cometidas, a maledicência praticada. Perdoe minha falta de indulgência. Perdoe meu excesso de orgulho e, acima de tudo, perdoe a falta de amor com que lhe segui em séculos de convivência, seja ela fraternal, amistosa, marital... Há muito a ser feito, e esta é uma intuição que me atrevo a divulgar, não temos mais tempo para viver de perguntas sem respostas, de ansiedades por um futuro que não nos pertence, ainda, diretamente, já que ele está sendo construído a todo momento por meio de nossas atitudes e a cada minuto chumbamos um novo tijolo, depositamos uma nova pá de concreto na construção dos alicerces daquilo que chamamos de futuro. Talvez fosse mais prudente de nossa parte preocuparmo-nos com cada um desses tijolos, com cada uma dessas pás ao invés de perder horas a fio vislumbrando uma fotografia imaginária de um edifício pronto, esplendoroso, imponente, esquecendo-nos de que nada adianta querer o futuro sem calçá-lo em alicerces firmes, nada adianta firmar alicerces sem a manutenção adequada daquilo que se contruiu, ou o tão esperado futuro não passará de um imponente esqueleto, pelo qual a energia vital passou após ter-lhe feito o sangue fervilhar por cada centímetro de vida que lhe coube, e então, tudo aquilo que era importante na época em que deveríamos nos preocupar com as bases será encarado como puro lixo, à disposição do fim. Perdoe-nos a facilidade com que retiramos do caminho as provas de que não somos tudo aquilo que nos fazem acreditar que somos. Perdoe-nos por apontar a degradação do mundo sem tomar para nós mesmos a nossa própria putrefação. Perdoe-nos por enfeitar aos olhos aquilo que é feio para a alma. Perdoe-nos a falta de coragem. Perdoe-nos por não perdoarmos. Perdoe-nos a mais profunda falta de amor, perdoe-nos, futuros degradados por nossos próprios méritos que somos. Perdoe-nos sinceramente, como um dia esperamos aprender a perdoar. Ame-nos como um dia pretendemos aprender a amar. Salve-nos... Salve-nos de nós mesmos e de nossa própria inquisição. Perdão!

13 maio 2010

O homem, a casa e a tempestade

O sol brilha lá fora. Choveu torrencialmente e ele se sentia como uma formiga que consegue abrigo sobre uma folha que flutua nas águas sujas e agitadas da enchente. O sol brilha e seu calor providenciou a evaporação da água para que o trabalho de limpeza pudesse ser feito o mais rapidamente possível - seria melhor apagar os vestígios que a tempestade deixou. As marcas eram agora completamente indesejáveis. Quanto mais ele esfregava as manchas na parede, mais evidentes elas ficavam e então, ele chegou a pensar que o melhor fosse não esfregá-las mais, pois um dia, aquele sol insistente haveria de invadir a casa por qualquer fresta, porta ou janela aberta e faria a fineza de secar aquilo tudo e apagar de uma vez. Ele sorriu: a ironia desse raciocínio o fez se sentir um imbecil: como pedir à luz que apague? O sol brilha e seu reflexo ilumina as manchas na parede - e seria inútil mesmo derrubar a parede e refazê-la - o problema era a casa! Sim, a casa, estúpida, parada ali naquele lugar, sendo lavada pelas tempestades que vinham sempre que o sol resolvia fazer coisa melhor em outro canto. A casa permanecia lá, humildemente orgulhosa pelas paredes manchadas e pelo sol que insistia em brilhar e em iluminar nela aquilo tudo que ela, a essas alturas já não fazia mais questão de esconder. Ela sabia que se fosse derrubada, voltaria a viver em qualquer coisa que fosse construída naquele lugar - ela era aquele lugar e estava sossegada com sua situação. Mas e ele? O sol ainda brilhava e ele amenizava as manchas como podia, entretanto, aprendia a conviver com sua rotina de limpar, esperar secar, ver o sol se esconder, vir a garoa, chuva, tempestade, enchente, estagnação, sol, limpeza... o ciclo se repetia e ele já estava habituado, apesar de um certo cansaço e de uma preguiça sem tamanho que tomavam conta dele a cada nova chuva. Ele chorava, mas suas lágrimas não serviam para nada além de brilharem quando ele punha o rosto na janela e se deixava tocar pelos raios do sol. Era como se ele, com seu tamanho de formiga, procurasse satisfazer a casa nos momentos de estiagem fornecendo-lhe sua pequena chuva. Algumas vezes ele secava. Sentia-se sufocado e sem ter o que botar para fora traduzido em água e, quanto mais submerso ele quisesse ficar, menos água havia. E foi desse modo que ele adivinhou brevemente que era insignificante e que não havia o que ele pudesse fazer para se tornar controlador do amanhã. A ansiedade era apenas a vontade de ter hoje o que poderia ter amanhã e isso o tirava do sério. Doía-lhe o estômago. À casa, nada doía, por isso ela ficava lá. Fizesse chuva, fizesse sol. As manchas eram parte dela, coisas que apenas uma casa velha pode entender e, pasme, valorizar. Sim, o sol brilhava e iluminava as manchas que ela exibia orgulhosa. Entre um pranto e outro, em momentos de estiagem, olhava as manchas e já não via mais manchas. Ele já podia se lembrar de quando cada uma delas havia aparecido e se tornado parte dele, como já eram parte daquela casa que era sua e da qual ele nunca pensou em sair. Ele sorria ao ver as manchas se transformarem em desenhos que remetiam à história dele e que eram a própria história da casa. De repente, cada uma daquelas manchas se tornou uma lembrança que ía além da sujeira e do estrago que pareciam ser à primeira vista e a quem visse de fora tudo aquilo. Só ele sabia interpretar aqueles desenhos como eles realmente eram e se baseava justamente em sua vivência compulsória ao lado deles. Daquelas manchas que eram reavivadas a cada enchente, surgiam lembranças que ele filtrava e, também já havia aprendido a ficar apenas com as que fossem motivos para estiagem. Ele sorria... após cada tempestade, cada mancha tinha consigo um significado diferente, o que o fazia diferente. Ele mudou - tudo aquilo que antes parecia não ter a mínima serventia passou a ser vital à medida em que os significados foram sendo modificados com o passar dos tempos. Ele aprendera a cantar e cada mancha era motivo para uma música diferente. O sol brilhava e ele sorria, cantando e limpando,pensando. O sol continuava brilhando e a casa ainda estava lá, mas a essas alturas, ele já estava velho e manchado, sem possibilidades de reforma, já que estas eram privilégio da casa.

08 março 2010

Alles was ich wünsche...

... ist so verloren....

Tudo que eu desejo é nosso amor
que o vermelho sempre nos cerque
que nenhuma nuvem negra nos entristeça
que nenhum passaro escuro rompa esse laço dourado

Apenas passaros claros com asas brancas
devem nos trazer um pouco da eternidade
As noites nunca deverão tragar o dia
e o sol aquecido jamais deve se pôr

Ah, o mundo! Gostaria de presenteá-lo todo
Não quero pensar na despedida,
nem no dia que se transforma em noite

Num profundo mar de flores quero me afogar
E afundar nos seus olhos esse grande desejo
de que o amor permaneça

Tudo que eu quero está perdido
como o pobre amor que nos juramos
como os corações quentes que há muito congelaram
como as flores vermelhas que nunca mais florescerão
((B. Wegner - em mais uma tradução em que me arrisco...))

26 agosto 2009

Sobre a caridade e o amor ao próximo

Era um dia como outro qualquer e ela resolveu ir ao banheiro. A cabeça doía com a leve insistência daqueles que desejam algo, mas ela não dava atenção. O tempo era curto e havia muitas coisas por fazer - ela adiara a ida ao banheiro até o último minuto permitido por sua racionalidade. Ao entrar, dirigiu-se diretamente a um dos reservados, aquele que era o seu favorito, pois ficava estrategicamente isolado dos demais e que era todo diferente, fechado até o teto. Para ela, funcionava como se houvesse um banheiro privativo dentro do banheiro e ela desfrutava desse luxo sem a mínima modéstia. Fechou a porta e observou o ambiente à procura de algo que a pudesse observar - causavam-lhe calafrios o olhar gélido de lagartixas escondidas nos cantos, borboletas que entravam pela janela e se perdiam; na pior das hipóteses, poderia estar em companhia de uma barata. Nesse caso, ela teria que correr, pois não havia espaço suficiente em qualquer lugar do mundo para ela e uma barata: suas inicias nem eram G.H., oras! (pensava ela enquanto esboçava um leve sorriso, orgulhosa por sua sagacidade) - não tendo encontrado nada que a impedisse de fazer aquilo a que se propusera quando pensou em ir ao banheiro, baixou o assento e, maquinalmente, puxou um pedaço de papel higiênico e se pôs a limpá-lo com o papel seco. Ecologicamente incorreta que era, porque acreditava que, no íntimo, todos fazem algo pelo que poderiam ser duramente condenados se aquilo fosse divulgado, atirou dentro do vaso o papel. Este, mal terminara de cair lá dentro ao se despender das mãos dela, quando posou sobre o assento um pequeno inseto, inofensivo, daqueles que não esboçam a menor reação quando uma mão os tenta espantar, ou mesmo matá-los. ao olhá-lo, ela até se lembrou de algumas pessoas que tinham essa mesma passividade em relação a tudo. Sem raciocinar, puxou outro teco de papel higiênico e cutucou o bichinho, porém, empurrou-o para dentro do vaso. Por um momento, ficou paralisada com sua crueldade: ela observava o insetinho dentro do vaso, debatendo-se na água, tentando lutar pela vida. Sem maiores reações, sentou-se no vaso em busca da paz de que necessitava para executar seu serviço, mas ainda pensava no inseto. Seria justo que ela, dita dotada de inteligência e raciocínio, fosse capaz de operar tamanha maldade contra um ser inofensivo e que era visivelmente incapaz de se defender das atitudes dela? Além de atirá-lo ao fim, ainda despejava sobre ele uma tempestade de dejetos que não o ajudariam em nada. Talvez até fossem de alguma ajuda, caso ele mantivesse a atitude que adotara ao cair na água e utilizasse aquilo tudo como um meio de salvação - pelo menos, ele se livraria da água: aquele ser inerte se debatia e parecia lutar contra a morte sentenciada por aquele pedaço de papel higiênico e pelo gesto do deus que o atirou à própria sorte. Sim, ela pensara nisso: de modo que para esse pobre animalzinho, sou eu o deus? Não, ela não se sentiu orgulhosa, ao contrário, sentiu grande remorso: pela primeira vez ela se sentira gigante, mesmo em sua estatura mediana e com seu físico franzino, cobiçado pelas mulheres de seu tempo. Ela era gigante diante daquele que se debatia abaixo dela, num mundo escuro e com tempestades - chuva ácida - Lembrou-se de quando parecia que alguma força maior a botava em situações semelhantes, tirando-a da inércia necessária de cada dia, e ela rogava por ajuda do seu Deus, muito maior do que ela. Talvez, o deus a tivesse nomeado como sub-deusa, já que ele mesmo era grande demais para gerenciar coisas como aquele inseto, que mesmo diante dela, pequena, era quase imperceptível. De posse de seu novo cargo, pôs-se a pensar que, talvez, aquele bicho estivesse fazendo exatamente o mesmo que ela faria. Estaria o inseto rezando, enquanto se movimentava impaciente nas águas do vaso? Sim, ela estava perdendo o controle e ultrapassando os limites da sanidade. Mas, no fundo, ninguém podia ser são todo o tempo e disso ela sabia muito bem. Com a calma daqueles que se julgam minimamente justos, limpou-se, ainda sentada no vaso, e atirou mais papel no vaso. Levantou-se, ajeitou sua roupa e instintivamente lançou olhar para aquele que estava subordinado a ela naquele momento, entregue à sua mais absoluta vontade, e notou que ele ainda se mexia. Abaixou-se um pouco mais e notou que sim, ele estava vivo. Dotada de alguma compaixão, que era mais remorso do que qualquer outro sentimento mais nobre, ela apanhou um pedaço de papel higiênico, grande o suficiente para que seus dedos não chegassem perto daquela imundice, e com todo o cuidado, tocou no inseto com uma pontinha de papel, prendendo-o e, dessa forma, retirou-o das águas. Ela abriu, então, o papel e notou que, apesar de molhado, ele vivia. Ela o colocou calmamente no chão, a salvo da fúria das águas e das tempestades sobre as quais ele não tinha o menor controle. Deu a descarga e saiu sem olhar para trás. Naquele momento, sua vida talvez tenha se tornado melhor, já que ela corrigira o problema que causara a um ser menor e inofensivo e já que, por um momento mínimo que fosse, teve a leve sensação de que a mão que tira é a mesma que dá e que, por menor que ela fosse, haveria alguma certeza de que algo muito maior a salvaria sabe-se lá de quê. Tranqüilamente, lavou as mãos e voltou ao seu posto de trabalho, parando antes na máquina de café para saborear aquele café horrível, completamente esquecida de seu súbito ataque de caridade e amor ao próximo.