25 dezembro 2006

Quando briguei com o natal

Era uma manhã ensolarada, as malas estavam prontas e partiríamos em seguida. Subindo a rua, olhei para trás e ela estava no portão, vestida com seu peignoir florido, acenando. Viramos a esquina após acenarmos de volta e pegamos um taxi rumo ao metrô e à rodoviária. Em algumas horas, estavamos em São Vicente, de volta ao velho Ed. Arco Iris.
Ela ficara em casa. Como era costume, passaria o natal junto do filho caçula, que viria buscá-la mais tarde, e da filha mais velha. Juntar-se-iam a ela alguns de seus netos, nora, genro e mais alguns amigos do seu filho.
Ela estava contente: suas filhas agora estavam juntas, sua casa estava ainda inacabada, porém havia nela o alívio por poder ajudar a família da filha mais velha a sair do aluguel. Havia um único banheiro, que ficava na casa de baixo, para as duas casas. Em cima, praticamente não havia janelas e nas que estavam lá, não havia vidros. A mudança ocorrera às pressas, após o casamento da neta mais velha e não havia previsão para terminarem as obras.
No alto da casa, havia uma grande área, sem muros, que, futuramente, seria uma lavanderia. Por enquanto, só era possível estender algumas roupas nos varais - isso era especialmente útil porque ajudava a roupa a secar mais rapidamente.
Ela subiu à casa da filha mais velha. Estavam sozinhas e uma faria companhia à outra. Conversavam sobre o natal e num momento a filha disse:
-Sabe, mãe? Eu acho que ninguém deveria morrer no natal. É uma data tão bonita que a morte deveria ficar de fora...
-Ah, minha filha... Tudo depende da vontade de Deus. Se ele quiser chamar alguém, chamará e pronto.
-Ah, mas não deveria!
-Vou lá em cima pegar as roupas da sua irmã que ficaram estendidas.
E ela, vagarosamente, subiu as escadas. Demorou-se um tempo recolhendo as roupas e guardando os prendedores nos bolsos do peignoir. Terminado o serviço, ela desceu e parou à porta da casa da filha mais velha e continuaram a conversar diversos assuntos. A filha lavava a louça na pia da cozinha, de onde era possível observar a mãe parada na porta, do lado de fora, próxima à escadaria.
A conversa seguia calmamente, faziam planos para o natal, comentavam a viagem da outra filha...Distrairam-se por um momento e o silêncio foi interrompido quando ela exclamou:
-Ai, Lourdes!
A filha olhou para a porta e não viu mais a mãe. Largou a louça na pia e correu para a porta. Ela estava lá embaixo, caida. Rolara pela escada e tinha um braço quebrado. Estava desacordada.
A filha, desesperada, gritava por socorro: conseguiu erguer a cabeça da mãe e abrir a porta de madeira que havia no final da escada. Apareceram as vizinhas que prontamente ajudaram. Uma delas, a única que possuía carro na rua, um Fusca marrom da década de 1960, posicionou o veículo de maneira a colocarem-na no carro. Partiram para o hospital mais próximo onde ela ficara internada. O filho mais novo foi chamado e providenciou a transferência da mãe para um hospital onde ela pudesse receber um tratamento melhor. Ela já estava em coma.
Era noite e a limpeza do apartamento 62 do Ed. Arco Iris estava terminada. Tocou o telefone. O genro atendeu e deu a notícia à outra filha. As malas foram rearrumadas e a volta para São Paulo seria na manhã seguinte.
Ao chegarmos em São Paulo, no dia seguinte, fomos ao hospital. O filho caçula, buscou a família da irmã. Na UTI, entrara a filha do meio, que acabara de chegar de viagem. Ver a mãe entubada e desacordada foi a cena mais triste de sua vida. assim como foi triste aquele dia todo.
À noite, todos estavam reunidos na casa do filho caçula. Não havia festa. Havia alguma comida que fora preparada para o natal e havia presentes. O presente dela estava guardado no armário: era um vestido lilás, sua cor predileta, comprado pela nora para a noite de natal. Lágrimas. Todos choravam e rezavam pela recuperação dela. À meia noite, cantamos Parabéns a você para o aniversariante. Ela faria questão disso e fizemos como ela gostaria que fosse feito, apesar do clima não ser minimamente favorável a comemorações.
Fomos levados de volta para a casa onde tudo ocorrera dois dias antes e dormimos.
Por volta de sete horas da manhã, D. Ada, uma bondosa velhinha que era amiga dela e vizinha chamava no portão. D. Ada possuia telefone e, naquela época, nós não possuíamos. Ela trazia um recado do hospital.
Acordei ao ouvir o choro de minha mãe e minha tia. Como toda criança, não entendia muito o que estava acontecendo, mas quis saber por que elas choravam. Meu pai pegou-me no colo e me levou para o quarto. Sentamos e ele me disse:
- Fernando, a vó foi para o céu.
Comecei a chorar e a questionar...lembro-me de ele ter me dito que todos temos uma missão para cumprir aqui e que quando terminamos o papai do céu nos chama para o céu...
Vestiram-na com seu vestido lilás novo, que ela nunca havia visto. Ela tinha um braço engessado pq o quebrou na queda, causada pelo desmaio em conseqüencia de um AVC que rompeu todos os vasos de seu cérebro. Era 25 de dezembro de 1988, um domingo ensolarado. As araras do viveiro que havia no Cemitério de Congonhas estavam em seus poleiros, coloridas, contrastando com o triste lilás em uma das salas e indiferentes: elas nem sabiam que era natal e que ela estava ironicamente morta neste dia.