26 agosto 2009

Sobre a caridade e o amor ao próximo

Era um dia como outro qualquer e ela resolveu ir ao banheiro. A cabeça doía com a leve insistência daqueles que desejam algo, mas ela não dava atenção. O tempo era curto e havia muitas coisas por fazer - ela adiara a ida ao banheiro até o último minuto permitido por sua racionalidade. Ao entrar, dirigiu-se diretamente a um dos reservados, aquele que era o seu favorito, pois ficava estrategicamente isolado dos demais e que era todo diferente, fechado até o teto. Para ela, funcionava como se houvesse um banheiro privativo dentro do banheiro e ela desfrutava desse luxo sem a mínima modéstia. Fechou a porta e observou o ambiente à procura de algo que a pudesse observar - causavam-lhe calafrios o olhar gélido de lagartixas escondidas nos cantos, borboletas que entravam pela janela e se perdiam; na pior das hipóteses, poderia estar em companhia de uma barata. Nesse caso, ela teria que correr, pois não havia espaço suficiente em qualquer lugar do mundo para ela e uma barata: suas inicias nem eram G.H., oras! (pensava ela enquanto esboçava um leve sorriso, orgulhosa por sua sagacidade) - não tendo encontrado nada que a impedisse de fazer aquilo a que se propusera quando pensou em ir ao banheiro, baixou o assento e, maquinalmente, puxou um pedaço de papel higiênico e se pôs a limpá-lo com o papel seco. Ecologicamente incorreta que era, porque acreditava que, no íntimo, todos fazem algo pelo que poderiam ser duramente condenados se aquilo fosse divulgado, atirou dentro do vaso o papel. Este, mal terminara de cair lá dentro ao se despender das mãos dela, quando posou sobre o assento um pequeno inseto, inofensivo, daqueles que não esboçam a menor reação quando uma mão os tenta espantar, ou mesmo matá-los. ao olhá-lo, ela até se lembrou de algumas pessoas que tinham essa mesma passividade em relação a tudo. Sem raciocinar, puxou outro teco de papel higiênico e cutucou o bichinho, porém, empurrou-o para dentro do vaso. Por um momento, ficou paralisada com sua crueldade: ela observava o insetinho dentro do vaso, debatendo-se na água, tentando lutar pela vida. Sem maiores reações, sentou-se no vaso em busca da paz de que necessitava para executar seu serviço, mas ainda pensava no inseto. Seria justo que ela, dita dotada de inteligência e raciocínio, fosse capaz de operar tamanha maldade contra um ser inofensivo e que era visivelmente incapaz de se defender das atitudes dela? Além de atirá-lo ao fim, ainda despejava sobre ele uma tempestade de dejetos que não o ajudariam em nada. Talvez até fossem de alguma ajuda, caso ele mantivesse a atitude que adotara ao cair na água e utilizasse aquilo tudo como um meio de salvação - pelo menos, ele se livraria da água: aquele ser inerte se debatia e parecia lutar contra a morte sentenciada por aquele pedaço de papel higiênico e pelo gesto do deus que o atirou à própria sorte. Sim, ela pensara nisso: de modo que para esse pobre animalzinho, sou eu o deus? Não, ela não se sentiu orgulhosa, ao contrário, sentiu grande remorso: pela primeira vez ela se sentira gigante, mesmo em sua estatura mediana e com seu físico franzino, cobiçado pelas mulheres de seu tempo. Ela era gigante diante daquele que se debatia abaixo dela, num mundo escuro e com tempestades - chuva ácida - Lembrou-se de quando parecia que alguma força maior a botava em situações semelhantes, tirando-a da inércia necessária de cada dia, e ela rogava por ajuda do seu Deus, muito maior do que ela. Talvez, o deus a tivesse nomeado como sub-deusa, já que ele mesmo era grande demais para gerenciar coisas como aquele inseto, que mesmo diante dela, pequena, era quase imperceptível. De posse de seu novo cargo, pôs-se a pensar que, talvez, aquele bicho estivesse fazendo exatamente o mesmo que ela faria. Estaria o inseto rezando, enquanto se movimentava impaciente nas águas do vaso? Sim, ela estava perdendo o controle e ultrapassando os limites da sanidade. Mas, no fundo, ninguém podia ser são todo o tempo e disso ela sabia muito bem. Com a calma daqueles que se julgam minimamente justos, limpou-se, ainda sentada no vaso, e atirou mais papel no vaso. Levantou-se, ajeitou sua roupa e instintivamente lançou olhar para aquele que estava subordinado a ela naquele momento, entregue à sua mais absoluta vontade, e notou que ele ainda se mexia. Abaixou-se um pouco mais e notou que sim, ele estava vivo. Dotada de alguma compaixão, que era mais remorso do que qualquer outro sentimento mais nobre, ela apanhou um pedaço de papel higiênico, grande o suficiente para que seus dedos não chegassem perto daquela imundice, e com todo o cuidado, tocou no inseto com uma pontinha de papel, prendendo-o e, dessa forma, retirou-o das águas. Ela abriu, então, o papel e notou que, apesar de molhado, ele vivia. Ela o colocou calmamente no chão, a salvo da fúria das águas e das tempestades sobre as quais ele não tinha o menor controle. Deu a descarga e saiu sem olhar para trás. Naquele momento, sua vida talvez tenha se tornado melhor, já que ela corrigira o problema que causara a um ser menor e inofensivo e já que, por um momento mínimo que fosse, teve a leve sensação de que a mão que tira é a mesma que dá e que, por menor que ela fosse, haveria alguma certeza de que algo muito maior a salvaria sabe-se lá de quê. Tranqüilamente, lavou as mãos e voltou ao seu posto de trabalho, parando antes na máquina de café para saborear aquele café horrível, completamente esquecida de seu súbito ataque de caridade e amor ao próximo.

24 agosto 2009

O perigo de sonhar após o jantar

Imaginou seu sonho desfeito. Olhou em volta e milhares de peças estavam espalhadas como se todas as vidraças do mundo estivessem destruídas, contribuindo na composição daquele visual opressor. Nas peças, enxergava aquela felicidade com a qual sonhara e parte daquela que vivera. Cada peça era como um quadro de um filme que se projetava diante de seus olhos mostrando cada instante, cada minuto, trazendo de volta sorrisos, palavras ditas e que voaram quando se quebraram as vidraças, libertando-se, junto de cada perfume e cada cheiro que voava rapidamente, assustado, mas não sem antes passar por aquelas narinas entre olhos marejados que observavam, observavam... Olhava e tudo parecia tão real que era impossível acreditar naquilo que via, daí, algo o fazia duvidar, lembrando-o de que a imaginação era menos real do que o sonho fora e, de repente, ele voltava à realidade. Olhava em sua volta e nada mais via além do chão, que precisava ser limpo de todo jeito, entretanto, não havia nenhum resquicio de nada destruído, nenhum sonho aniquilado. Os monstros que ele alimentava haviam partido para a hibernação necessária daqueles que têm todo um banquete para digerir. Aliás é bom que se tenha cuidado com o refluxo.
Deixo de lado as minhas tristezas
Quero enterrá-las calmamente
Então, talvez um vento obscuro
sopre calmamente por lá
Não quero tê-las nunca mais...
((B.Wegner[em tradução livre]))

11 agosto 2009

Sobre renovar-se entre hiatos

Sim, amanheceu mais um dia igual a tantos outros. Enquanto nada novo acontecia no desenrolar das horas, ele fazia a fineza de viver ao sabor do que lhe cabia. Perdido em seus devaneios, maquinalmente fazia suas atividades entre um hiato e outro. Considerava-se um privilegiado por perceber a existência de hiatos em períodos tão iguais e por ousar tirar proveito de cada um deles. Em alguns desses vácuos, escrevia, e essa lhe parecia a melhor maneira de ocupar tempos aparentemente inúteis, dando forma física a toda confusão que só tinha capacidade de tomar forma em seus pensamentos e que ocupava muito espaço. Era necessário limpar, liberar espaço, esvaziar gavetas e armários - já haviam chegado novas idéias que substituiriam com precisão quase cirúrgica muitas das idéias que ainda ocupavam as acomodações disponíveis. Ele se ocupava disso nos vácuos: limpava gavetas, tentando remover manchas antigas que poderiam macular as novas aquisições; mas não. Ele já sabia que não se pode retornar: uma vez que um passo fora dado em direção ao novo, retornar ao velho era impossível, porque não se volta a ser o que se foi. Sim, novas idéias têm muita força, suficiente para não permitir mais a alimentação das antigas, que acabam mortas por inanição ao longo dos anos. E assim, dizem que se aprende. Sim, amanheceu mais um dia igual aos outros, entretanto, a cada amanhecer ele se sabia diferente e cada dia sabia diferente, porque era justamente para isso que serviam tantos hiatos. Era necessário o tempo de vácuo para lidar com coisas antigas, reformadas num dos tantos hiatos de limpeza e arrumação. Era necessário o tempo de vácuo para digerir o novo e reprogramar, adaptar o sistema às novas condições de funcionamento.Era necessário algum vácuo para lidar com o novo. E assim, seus pensamentos foram sendo redirecionados de modo que determinadas idéias ficaram melhor definidas e praticamente colocadas em suas respectivas gavetas e prateleiras para serem usadas. O peso inútil vai sendo descartado a cada dia. Sim, ele se renova.

09 agosto 2009

Times have changed...

I must have left my house at eight
because I always do
my train, I’m certain
left the station just when it was due
I must have read the morning paper
going into town
and having gotten through the editorial
no doubt I must have frowned
I must have made my desk
around a quarter after nine
with letters to be read
and heaps of papers waiting to be signed
I must have gone to lunch
at half past twelve or so
the usual place, the usual bunch
and still on top of this
I’m pretty sure it must have rained
the day before you came

I must have lit my seventh
cigarette at half past two
and at the time I never
even noticed I was blue
I must have kept on dragging
through the business of the day
without really knowing anything
I hid a part of me away
at five I must have left
there’s no exception to the rule
a matter of routine
I’ve done it ever since I finished school
the train back home again
undoubtedly I must have
read the evening paper then
oh yes, I’m sure my life was
well within its usual frame
the day before you came

I must have opened my front door
at eight o’clock or so
and stopped along the way
to buy some Chinese food to go
I’m sure I had my dinner
watching something on TV
there’s not, I think, a single
episode of Dallas that I didn’t see
I must have gone to bed
around a quarter after ten
I need a lot of sleep and so
I like to be in bed by then
I must have read a while
the latest one by Marilyn French
or something in that style
it’s funny, but I had no sense
of living without aim
the day before you came

And turning out the light
I must have yawned and
cuddled up for yet another night
and rattling on the roof
I must have heard the sound of rain
the day before you came

((Benny Andersson & Björn Ulvaeus))