13 maio 2010

O homem, a casa e a tempestade

O sol brilha lá fora. Choveu torrencialmente e ele se sentia como uma formiga que consegue abrigo sobre uma folha que flutua nas águas sujas e agitadas da enchente. O sol brilha e seu calor providenciou a evaporação da água para que o trabalho de limpeza pudesse ser feito o mais rapidamente possível - seria melhor apagar os vestígios que a tempestade deixou. As marcas eram agora completamente indesejáveis. Quanto mais ele esfregava as manchas na parede, mais evidentes elas ficavam e então, ele chegou a pensar que o melhor fosse não esfregá-las mais, pois um dia, aquele sol insistente haveria de invadir a casa por qualquer fresta, porta ou janela aberta e faria a fineza de secar aquilo tudo e apagar de uma vez. Ele sorriu: a ironia desse raciocínio o fez se sentir um imbecil: como pedir à luz que apague? O sol brilha e seu reflexo ilumina as manchas na parede - e seria inútil mesmo derrubar a parede e refazê-la - o problema era a casa! Sim, a casa, estúpida, parada ali naquele lugar, sendo lavada pelas tempestades que vinham sempre que o sol resolvia fazer coisa melhor em outro canto. A casa permanecia lá, humildemente orgulhosa pelas paredes manchadas e pelo sol que insistia em brilhar e em iluminar nela aquilo tudo que ela, a essas alturas já não fazia mais questão de esconder. Ela sabia que se fosse derrubada, voltaria a viver em qualquer coisa que fosse construída naquele lugar - ela era aquele lugar e estava sossegada com sua situação. Mas e ele? O sol ainda brilhava e ele amenizava as manchas como podia, entretanto, aprendia a conviver com sua rotina de limpar, esperar secar, ver o sol se esconder, vir a garoa, chuva, tempestade, enchente, estagnação, sol, limpeza... o ciclo se repetia e ele já estava habituado, apesar de um certo cansaço e de uma preguiça sem tamanho que tomavam conta dele a cada nova chuva. Ele chorava, mas suas lágrimas não serviam para nada além de brilharem quando ele punha o rosto na janela e se deixava tocar pelos raios do sol. Era como se ele, com seu tamanho de formiga, procurasse satisfazer a casa nos momentos de estiagem fornecendo-lhe sua pequena chuva. Algumas vezes ele secava. Sentia-se sufocado e sem ter o que botar para fora traduzido em água e, quanto mais submerso ele quisesse ficar, menos água havia. E foi desse modo que ele adivinhou brevemente que era insignificante e que não havia o que ele pudesse fazer para se tornar controlador do amanhã. A ansiedade era apenas a vontade de ter hoje o que poderia ter amanhã e isso o tirava do sério. Doía-lhe o estômago. À casa, nada doía, por isso ela ficava lá. Fizesse chuva, fizesse sol. As manchas eram parte dela, coisas que apenas uma casa velha pode entender e, pasme, valorizar. Sim, o sol brilhava e iluminava as manchas que ela exibia orgulhosa. Entre um pranto e outro, em momentos de estiagem, olhava as manchas e já não via mais manchas. Ele já podia se lembrar de quando cada uma delas havia aparecido e se tornado parte dele, como já eram parte daquela casa que era sua e da qual ele nunca pensou em sair. Ele sorria ao ver as manchas se transformarem em desenhos que remetiam à história dele e que eram a própria história da casa. De repente, cada uma daquelas manchas se tornou uma lembrança que ía além da sujeira e do estrago que pareciam ser à primeira vista e a quem visse de fora tudo aquilo. Só ele sabia interpretar aqueles desenhos como eles realmente eram e se baseava justamente em sua vivência compulsória ao lado deles. Daquelas manchas que eram reavivadas a cada enchente, surgiam lembranças que ele filtrava e, também já havia aprendido a ficar apenas com as que fossem motivos para estiagem. Ele sorria... após cada tempestade, cada mancha tinha consigo um significado diferente, o que o fazia diferente. Ele mudou - tudo aquilo que antes parecia não ter a mínima serventia passou a ser vital à medida em que os significados foram sendo modificados com o passar dos tempos. Ele aprendera a cantar e cada mancha era motivo para uma música diferente. O sol brilhava e ele sorria, cantando e limpando,pensando. O sol continuava brilhando e a casa ainda estava lá, mas a essas alturas, ele já estava velho e manchado, sem possibilidades de reforma, já que estas eram privilégio da casa.